incapturabilidade como vingança
crítica de A Bailarina Fantasma, com Verônica Santos; idealização de Fernando Gimenes, encenação e instalação cênica de Wagner Antônio, dramaturgia de Dione Carlos e trilha sonora original de Natália Nery. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“É que é toda vez a mesma merda / Ceis mata um eu de carne pra fazer um de pedra” (LUTA POR MIM, Jup do Bairro e Mulambo)
“Tudo que pode ser mecanizado é mecanizado. O resultado: nosso reconhecimento do que não pode ser mecanizado.” (Man and Art Figure, Oskar Schlemmer)
Verônica Santos, bailarina natural de Belo Horizonte (MG), convida o público a se aproximar. O porão do Centro Cultural São Paulo parece imenso em torno dela. Sobre um pequeno quadrado vermelho, acompanhada de uma folha de cobre e um pedaço de cera, ela fala de sua trajetória na dança. Da origem pobre e periférica às recorrentes lesões, carne, osso e ligamentos se apresentam intimamente. É assim que se inicia A Bailarina Fantasma, projeto idealizado pelo produtor Fernando Gimenes, com encenação e instalação cênica de Wagner Antônio, dramaturgia de Dione Carlos, trilha sonora original executada ao vivo no piano e voz de Natália Nery e atuação de Santos.
À narrativa biográfica soma-se o enfrentamento da Pequena Bailarina de 14 Anos, escultura de Edgar Degas, e também uma lida horizontal com materialidades tangíveis e intangíveis. Carne, cera, bronze, luz, espelhos, sombra, projeções, duplos, som, calor, vingança. A Bailarina Fantasma traz algo de opaco, fugidio, fugitivo, e Santos como que torna-se peça expositiva prestes a implodir o museu. “No balé, mar de meninas nutridas e descansadas / Verônica entende que jamais será Verónique”, diz um trecho da dramaturgia de Carlos.
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Marie van Goethem, nascida em 1865, filha de uma lavadeira e de um alfaiate, foi aceita na escola de dança da Ópera de Paris em 1878 e demitida em 1882. Pouco mais se sabe da vida dessa jovem: “Marie desapareceu sem deixar rastros”, afirma a escritora francesa Camille Laurens, “A pequena dançarina voou para longe. Seus restos mortais provavelmente não estão em um sepulcro, mas em uma vala comum”.
Em sua época, o balé havia sido reduzido a apresentações em interlúdios de óperas e à objetificação do corpo feminino: as dançarinas eram chamadas de petit rats (ratinhas) e se aqueciam em um espaço chamado foyer de la danse enquanto eram observadas pelos abonnés (homens de posses que apoiavam a Ópera). Enquanto o interesse de muitos estava ligado à favores sexuais e prostituição, Degas lançava seu olhar para essa “realidade” por trás das cortinas e coreografias.
“O balé cria mulheres estátuas, aprisionadas em bronze”, diz a voz de Carlos em A Bailarina Fantasma. É Degas que, de algum modo, eterniza Marie van Goethem. Se sua carne desapareceu em uma sepultura comunal, a escultura para qual ela foi modelo, A Pequena Bailarina de 14 Anos, trouxe seus contornos originalmente em cera e, hoje, 28 cópias em bronze habitam museus e galerias ao redor do mundo. Essa transfiguração material não se dá de forma pacífica: como escreve a pesquisadora brasileira Ana Gonçalves Magalhães, “O fato de que as versões em bronze de A Pequena Bailarina de 14 Anos tenham servido de modelo para a fabricação de bibelôs esconde o que o original exprime e representa: o espécime degenerado de uma menina bailarina prostituída da Ópera de Paris”.
Walter Benjamin, no célebre ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, aponta que “mesmo na reprodução mais perfeita uma coisa se perde: o aqui e agora da obra de arte”; assim, “aquilo que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura”. As reproduções em bronze de A Pequena Bailarina de 14 Anos aniquilam sua aura, retirando-lhe o aqui-agora de sua criação. Trata-se da única escultura exibida por Degas em vida – sua apresentação foi um “succès de scandale”, causando impacto pelo uso de peças de vestimenta como forma de realçar a realidade. Também pela própria ojeriza de críticos da época à bailarinas: Paul Mantz descreve a Pequena Bailarina como uma “flor de depravação precoce”, que “avança com desfaçatez bestial o rosto, ou melhor, o pequeno focinho”.
Entre 2020 e 2021, no contexto da exposição Degas, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) trouxe, acompanhando as esculturas, fotografias em grandes dimensões de Sofia Borges. As que registravam a Pequena Bailarina traziam um “retrato cru, algo grotesco”; como se a imagem pudesse confrontar a visão que se costuma ter das obras do pintor e escultor, que as associa “à delicadeza, à feminilidade”.
O interesse de Degas era retratar “suas pequenas macaquinhas (…) estalando suas articulações na barra”. As fotografias de Borges podem, em seu enquadramento mais “brutal”, reacender o ponto de vista do artista, mesmo a partir da reprodução de uma reprodução. Verônica Santos caminha perto das pessoas e agacha, dando a ouvir suas juntas estalando. Em um segundo momento de A Bailarina Fantasma, o público é convidado a flanar pelo espaço, ocupado agora por obras-estações entre as quais Santos circula, para, age, dança. Dores ainda se revelam em seus gestos-movimentos.
Benjamin afirma que não há “um oposto mais absoluto para a obra de arte totalmente absorvida pela reprodução técnica (…) do que a arte cênica” e talvez ali se transfigure a aura da Pequena Bailarina mesmo que enquanto fantasmagoria. Santos, diante de projeções, dança com seus duplos; a repetição e a reprodução aqui estão longe do foco da crítica do filósofo – ela pluraliza-se consigo, a presença ainda como centro; uma multidão não é uma massa.
Antes, durante e depois da voz de Dione Carlos contar-evocar desta Bailarina Fantasma, há muito que acontece pelo espaço. Para além de toda a materialidade das obras-estações, voz e piano de Natália Nery e a luz de Wagner Antônio são matérias intangíveis, convocando a percepção do público a percebê-las também como presenças importantes na experiência da obra. Um foco ilumina uma caixa de som, como se dizendo “veja o som”. Outros são fonte de calor para o derretimento da cera; outros multiplicam-se em espelhos. Projeções também são luz e sombra em suas cores opacas. O olhar e o corpo passeiam por toda a instalação, como que na busca por assombrações, aparições, reminiscências. A Bailarina Fantasma é simultaneamente contemplativa e imersiva, de algum modo, demandando do público presente um engajamento ativo para a fruição.
Há, inclusive, algum grau de dúvida que se coloca em torno das possibilidades de ativar as materialidades presentes; Santos toca as obras-instalações e mobiliza seu corpo no confronto dos materiais como iguais, reorganizando lanças-varetas, discos e quadrados, se relacionando com água, paredes, espelhos e também com o imaterial das luzes, projeções e sombras. Não se evidencia de forma nítida se as ações da bailarina são convites à ação ou à contemplação.
De todo modo, há uma operação de transfiguração da forma humana – o que, segundo Oskar Schlemmer (em Man and Art Figure), se trata da própria história do teatro. E, tal qual propunha o artista alemão para o teatro da Bauhaus, em A Bailarina Fantasma “os materiais envolvidos nessa transfiguração são forma e cor, os materiais do pintor e do escultor”. Há uma dupla conexão que se estabelece a partir destes princípios: a primeira trata do diálogo direto com a fonte primeira da criação, A Pequena Bailarina de 14 anos; a segunda se relaciona diretamente com a pesquisa que o encenador Wagner Antônio desenvolve há mais de uma década junto ao coletivo 28 patas furiosas – Isabel Wolfenson, diretora assistente da Bailarina Fantasma, também integra o grupo.
O treinamento, nomeado Dramaturgia de Forças pelas 28 patas furiosas em entrevista dada ao 4Parede, é realizado desde o princípio da formação do coletivo, que trabalha “a partir de investigações espaciais em conexão com a poética das atrizes e atores”. Nessa compreensão, citando mais uma vez o pensamento de Schlemmer em relação ao teatro para a Bauhaus, “o palco é um complexo orquestral que só surge por meio da cooperação de diversas forças. É a união do arranjo mais heterogêneo de elementos criativos” [no ensaio “Theater (Bühne)”].
Cores sólidas, polissemia, harmonia e confronto entre as forças materiais e imateriais do espaço e da presença; a própria história, uma peça radiofônica, um corpo que dança. Verônica Santos ocupa um centro, depois transita por margens, quinas, cantos, inscreve e se inscreve na paisagem. Vida, sonho, pesadelo, coisas, outras coisas, tantas coisas.
No princípio é o verbo, então carne, cera, bronze e daí o intangível e o que se revela ou não; “a opacidade engendra um território ético generativo de diferenças que se manifestam fora do cativeiro da compreensão, mais além do cercado do inteligível”, reflete Jota Mombaça em A plantação cognitiva. A Bailarina Fantasma traz, também na dimensão de seu debate racial, a criação de “uma ficção poética e conceitual em que ‘opaco’ é uma das formas de dizer ‘quilombo’”, assumindo, assim, “que a encruzilhada da vida negra está situada sobre um labirinto de túneis que conduzem da plantação cognitiva à floresta e da floresta ao assentamento fugitivo”.
O labirinto feito instalação; uma bailarina preta, uma bailarina de cera, a colonização de um corpo em técnicas e as formas de escapar para além da transparência e até mesmo da diferença. Uma roda de compartilhamento, um livre circular, um retorno ao centro. A Bailarina Fantasma traz o tempo todo um desejo de fuga. Dos enquadramentos, das violências, da imobilidade do bronze e da eternidade. Quando Santos inicia seu dançar no vazio, uma libertação: a incapturabilidade se efetiva como a vingança tão desejada.
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ficha técnica
A BAILARINA FANTASMA
Idealização e Direção de Produção: Fernando Gimenes | Produção: Plataforma – Estúdio de Produção Cultural | Atuação: Verônica Santos | Dramaturgia: Dione Carlos | Pianista: Natália Nery | Encenação e instalação cênica: Wagner Antônio | Diretora Assistente: Isabel Wolfenson | Mediação Artística-Psicanalítica: Rafael Costa | Equipe técnica performativa: Laysla Loysle, Ijur Sanso, Lucas JP Santos, Camila Refinetti, Denis Kageyama, Guilherme Zomer, Marina Meyer | Acessibilidade: Sina – Acessibilidade e Produção | Designer Gráfico: Murilo Thaveira | Fotos: Helton Nóbrega e Noelia Nájera | Redes Sociais: Jorge Ferreira | Fisioterapeuta: Claudia Carahyba | Professora de balé: Aurea Ferreira | Assistente de Produção: Bruno Ribeiro | Técnico de Gravação em Áudio: Fabrício Zava | Assessoria de Imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério