a perversa arquitetura da branquitude
crítica de 7PISOS, do Grupo Folias.
Numa manhã de março, Giuseppe Corte internou-se voluntariamente em um hospital excepcional no tratamento de sua doença, mas de estranhas características: seus pacientes dividiam-se em sete andares, de acordo com a gravidade de cada caso. Ao longo dos dias, Giuseppe se viu descendo daquele mais alto, reservado aos acometidos por leves sintomas, de onde observava curioso as tantas janelas dos outros andares, até o primeiro, dos moribundos, onde, esvaindo-se da vida, acaba por ver suas persianas se fechando.
7PISOS, o novo trabalho do Grupo Folias com direção de Dagoberto Feliz e dramaturgia de Paloma Franca Amorim, parte do conto sucintamente narrado acima, chamado Sete Andares, do italiano Dino Buzzati, escrito em 1942, para contar a história de Giuseppe – ou José P.? – Corte. Na narrativa de Buzzati, pouco se sabe sobre este cavalheiro e qual é especificamente a condição que o acomete. Ao mesmo tempo em que o foco parece estar neste caminhar imperceptível e indesviável rumo à própria morte, Sete Andares foi escrito sob o governo fascista de Benito Mussolini, em plena segunda guerra.
Quando Hannah Arendt descreve o totalitarismo em Entre o passado e o futuro, ela propõe a visualização de tal regime a partir de uma estrutura de cebola, em cujo centro, em uma espécie de espaço vazio, localiza-se o líder, onde as partes extraordinariamente múltiplas do movimento relacionam-se de tal modo que cada uma delas forma a fachada em uma direção e o centro na outra. Essa estrutura possibilitaria, segundo Arendt, a construção, mesmo sob condições de um governo totalitário, da ficção de um mundo normal.
“Os doentes dividiam-se assim por sete castas progressivas. Cada andar era como um pequeno mundo isolado, com as suas regras particulares, as suas especiais tradições que nos outros andares não tinham qualquer valor. E como cada sector estava nas mãos de um médico diferente, tinham-se criado diferenças específicas, ainda que mínimas, nos métodos de tratamento, apesar de o director geral ter dado ao instituto uma única orientação de fundo.” (Sete Andares, de Dino Buzzati, trad. de Clara Rowland)
Giuseppe Corte é sempre convencido de que sua condição é temporária, de que as coisas irão melhorar, de que ele retornará ao andar de cima em breve. Mas o cavalheiro, ainda no sexto andar, logo notaria que para voltar ao sétimo andar, para obter essa mínima mudança, iria ter de pôr em marcha uma máquina complexa. Tal percepção não o impede de seguir descendo, semana após semana.
Há uma diferença fundamental entre Sete Andares, de Buzzati, e 7PISOS, de Amorim e Folias: o sujeito. Enquanto pouco importa, no conto italiano, quem é – e como é – Giuseppe, no Galpão do Folias José P. tem sua existência atravessada pela raça. Alex Rocha, ator negro, interpreta Giuseppe/José P. Corte, um escritor negro. A construção desta personagem funciona como dispositivo para o jogo metalinguístico na encenação épica de Feliz: Rocha, com seu corpo inscrito em cena, é Corte, que escreve sua história na cena.
Ao redor do protagonista, dois atores (Lui Seixas e Marcellus Beghelle) e duas atrizes (Clarissa Moser e Marcella Vicentini), todos brancos, são enfermeiros, médicos, seguranças, professores; todos, entre a condescendência, o cinismo e a violência naturalizada, são algozes. São eles que conduzem Corte por este labirinto kafkiano, onde a burocracia dá lugar à patologia, adicionando camadas de perversidade à estrutura arquitetônica. 7PISOS é o edifício construído sobre inúmeros esqueletos que se sustenta em racismos científicos, estruturais e recreativos; uma arquitetura da branquitude que escancara a miséria patológica da ficção do normal.
Nesta descida brutal, Corte aos poucos revela que seus sintomas são feridas infligidas na pele e na história; e o escritor também parece encontrar espaço para fabular em torno de sua presença naquele ambiente inóspito, nos tantos lugares reais e simbólicos onde sua saúde, sua sanidade, sua inteligência e sua integridade são questionadas, violadas, atropeladas.
Na encenação do Folias, a iluminação de Gabriele Souza e Diego França constrói atmosferas diversas entre ficção e metaficção, enquanto a cenografia de Denise Guilherme e Giovanna Kelly, modular, compõe hierarquias nos vários planos sugeridos. Nos figurinos, também assinados por Guilherme, o vermelho e preto de Rocha destaca-se em contraposição ao branco sobre branco sobre branco dos demais intérpretes.
Não por acaso, são as cores que representam Exu: enquanto o protagonista de Buzzati segue como que resignado em direção à própria morte, o Corte de 7PISOS desce escancarando portas, escrevendo encruzilhadas, buscando abrir caminhos. Cada novo andar é a possibilidade de uma maior conscientização – e formalização de denúncias, tão metafóricas quanto diretas – deste escritor de si.
Diante de uma pequena mesa coberta de cinzas, Corte fala com um dos empregados do hospital sobre sua construção. Sobre as fundações daquela estrutura. Sobre o cemitério que repousava ali naquele solo. O branco acha que já há profundidade suficiente. Corte insiste. É necessário cavar, cavar mais. Cavar até chegar na África, nas muitas Áfricas: a fundação só pode se fazer depois de se escavar, escavar fundo. Encarar os esqueletos sobre os quais se construíram os pisos do mundo; lidar com eles, exumá-los todos.
Quando Giuseppe Corte chega ao piso mais baixo, onde ficam aqueles por quem era inútil ter esperança, ele está aqui; diante de nós, olhando para a rua. É onde estamos? Ou é por aqui que se pode escapar desta estrutura? Ao escrever sua história, ao inscrever-se na história, Corte é um entre tantas e tantos outros que podem seguir dizendo, mesmo após a morte; que podem seguir sendo ouvidos. Enquanto isso, para a branquitude, parece mesmo restar falar para o vazio enquanto a torre está em chamas.
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ficha técnica 7PISOS Grupo Folias Dramaturgia: Paloma Franca Amorim Direção: Dagoberto Feliz Elenco: Alex Rocha, Clarissa Moser, Lui Seixas, Marcella Vicentini e Marcellus Beghelle Pensamento Corporal : Mafalda Pequenino Direção Musical e Música Original: Marco França Direção Técnica: Giovanna Kelly Direção de Produção: Tetembua Dandara Assistente de Produção e Consultoria de Sonorização: Jo Coutinho Assistência de Direção: Rodrigo Scarpelli Cenografia: Denise Guilherme e Giovanna Kelly Cenotecnia: Lara Gutierrez Contra Mestre: Deoclécio Alexandre Aprendizes de Cenotecnia: Jenny Berté, Hélia Lopes, Mariana Ribertti e Trevor Philips Desenho e Confecção de Figurinos: Denise Guilherme Iluminação: Gabriele Souza e Diego França Sonorização: Equipe Galpão do Folias Estudos Teóricos: Eugênio Lima Estudos Corporais: Adriana Aragão e Mafalda Pequenino Arte Gráfica: Renan Marcondes Fotos: Cacá Bernardes Registro Audiovisual: Bruta Flor Filmes _ Cacá Bernardes e Bruna Lessa Assessoria de Imprensa: Pombo Correio Diarista: Fabiana Rodrigues Aprendizes: Fernanda Rocha e Guto Carvalho Acompanhamento de processo: Benedito Bandeira e Suzana Aragão Articulação com as escolas: Osmar Guerra Realização: Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo e Grupo Folias Apoio: Cooperativa Paulista de Teatro serviço de 18/02 até 04/04 sexta à segunda, 20h Local: Galpão do Folias - Rua Ana Cintra, 213 - ao lado do metrô Santa Cecília Ingressos: R$ 30 (Inteira), R$ 15 (Meia), R$ 10 (Sócio Morador) Link: www.galpaodofolias.com 14 anos 70 minutos