arquipélago, dança, destaque, performance

limiar

crítica a partir de Lança Cabocla, da Plataforma Lança Cabocla (MA/CE/BA/SP). este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Amanhã sonhei que tudo que escrevia era neblina.” (Anderson Feliciano, Um pequeno herbário de imagens-folhas)

Na performance ritual, o corpo-tela arrebata e dele emanam todos os elementos que o compõem e imantam, a coreografia dos movimentos, as ondas de sonoridade e de vocalidade, os vibratos, rítmicas e cadências, timbres, selos e sinetes, a composição do ar nos voleios das silhuetas e figuras que relampejam, e também os cheiros, os aromas e a química sagrada das ervas e dos temperos.” (Leda Maria Martins em Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela, ed. Cobogó)

Ao adentrar o Espaço Cênico do Sesc Pompeia, que recebeu Lança Cabocla entre os dias 20 e 23 de junho de 2024, o aroma das ervas era o primeiro contato do público com a obra. Defumações de proteção e cura, a sabedoria ancestral se espalha pelo ar; epistemologias produzidas e transmitidas para muito além de palavras escritas e até mesmo ditas. A chamada obra-processo da Plataforma Lança Cabocla, composta por artistas de São Luís (MA), Fortaleza (CE), Salvador (BA) e São Paulo (SP), é uma dança-aparição. Dar a ver o invisível está em sua essência e em sua realização.

Lança Cabocla é, de algum modo, em todo mistério – não segredo; mistério. Nomear a obra de Tieta Macau, Abeju Rizzo, Inaê Moreira, Ruan Francisco e Tuan Roque como performance pode ser um caminho para acessá-la, pensando em Renato Cohen (em Performance como linguagem, ed. Perspectiva) afirmando para o fato de que a característica fronteiriça de tal arte “permite analisar, sob outro enfoque, numa confrontação com o teatro, questões complexas como a da representação, do uso da convenção, do processo de criação, etc.“. Ao mesmo tempo, pensando no apontamento de Cohen em torno da problemática de que “qualquer descrição de ‘performance’ fica muito mais distante da sensação de assisti-las, reportando-se, geralmente, essa descrição ao relato dos ‘fatos’ acontecidos“, um olhar lançado sobre uma dança-aparição poderia buscar ir além do descritivo; uma escrita que pode se manter como neblina, tomando o conceito de Anderson Feliciano (que escreveu sobre Lança Cabocla em seu ensaio para a MITsp 2024; leia em Lança Cabocla e o gesto de macerar como movimento de transfluência, onde o artista cita um artigo-diálogo que é atravessado pela imagem da neblina).

A obra-neblina faz de si acontecimento – não como happening, até porque repetível, ensaiada, de algum modo roteirizada; há uma nítida (estranho falar em nitidez enquanto se pensa em neblina) dramaturgia da encenação. Ervas de proteção, danças de caboclo, altares dispostos pelo espaço contornados por círculos de sal, velas acesas e seu fogo transmutado em ação, pontos cantados; evocações e invocações desta gira cênica e seu transbordar da representação onde “o ato performático ritual não apenas nos remete ao universo semântico e simbólico da dupla repetição de uma ação re-apresentada, mas constitui, em si mesmo, a própria ação” nas palavras de Leda Maria Martins em suas Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela.



Um acontecimento singular, uma dança-aparição que se re-apresenta enquanto se auto-constitui. Nas sinopses presentes em páginas da Bienal Sesc de Dança e da MITbr, e também no texto de Iara Biderman para a publicação Cartografias da MITsp 2024, há a descrição de uma ação de convite ao público para a construção conjunta do espaço. Na apresentação do dia 21 de junho de 2024, não houve no início os corpos dançantes “chamando os corpos ‘de fora’, dos espectadores, para uma roda”, como escreveu Biderman. Lança Cabocla, no dia assistido, foi quase-que-como fruição. Mas algo inevitavelmente transbordava da ação de Macau, Abeju e Moreira. Na cena-gira, energias outras são assentadas no espaço-tempo em transformação. Entre a precisão teatral e a trajetória performático-ritual do acontecimento, es performers operam invocações e encenam encantaria.

Nos repertórios corporais, gestos e movimentos de danças populares, tradicionais, sagradas e disso, no momento presente, emerge um contemporâneo-outro. Peso, balanço, equilíbrio, parceria, duo, trio, coreografia. Talvez seja possível organizar Lança Cabocla a partir de suas composições corporais, mas é provável que isso faça pouco sentido neste lugar descritivo, técnico, esquemático. Como diz Jorge Glusberg em A Arte da Performance, o aspecto mágico da ‘performance’ leva em conta esta antiga sabedoria: o movimento do corpo é poderoso o suficiente para evocar algo que está sempre além dos níveis de consciência” – e cabe lembrar de Glusberg e outros autores importantes para pensar as relações entre performance e ritual, como Richard Schechner e Victor Turner, mas também é importante perceber a distância que há entre quem olhou lá e quem atua aqui. Então, mais duas vezes, Leda Maria Martins:

Como forma pensamento, os ritos são férteis acervos de reservas mnemônicas, ações cinéticas, padrões, procedimentos culturais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo corpo. Os ritos transmitem e instituem saberes estéticos, filosóficos e metafísicos, entre outros, quer em sua moldura simbólica, quer nos modos de enunciação, nos aparatos e convenções que esculpem sua performance.

No âmbito das performances rituais negras, o gesto, além de suas funções ditas exteriores, descritivas, ilustrativas e, mesmo, expressivas, pode e deve ser pensado como um ‘em si mesmo’ interior e anterior, uma condensação significante, síntese performática por excelência, em toda a gama extensiva de sua natureza, como hábito, conduta, léxico, ideograma e hieróglifo.

A forma pela qual a Plataforma Lança Cabocla esculpe sua performance faz dela neblina não por uma impossibilidade de dar a ver o que ali está, mas precisamente pela indesviável indefinição do que se estabelece, síntese do mistério, hieróglifo e revelação. Lança Cabocla é limiar. Performatividade ritual ou representação? Teatro, mentira e verdade são questionados e questionáveis nessa poética cabocla do cruzo. “Ninguém governa Encantado e Caboclo: quando eles querem vir, eles vêm“, escreve Biderman sobre a obra. Dança-aparição, dança-incorporação. Tempos que se dissipam e se instauram, materialidades e entidades se indistinguem em presença, convenções são feitas outras e atuação é um termo de múltiplos significados.

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