teatro

passado, presente, porvir: um preto mosaico

crítica de Fragmentos, da Companhia Negra de Teatro.

O projeto Teatro #EmCasaComSesc, dentro da programação do Sesc Ao Vivo, já conta com mais de trinta apresentações de obras adaptadas ou recriadas para o contexto on-line. No último dia 19, o ator mineiro Felipe Oládélè propôs Fragmentos, partindo de materiais de dois espetáculos da Companhia Negra de Teatro, de Belo Horizonte: o duo Chão de Pequenos, que mergulha no universo da adoção no Brasil em encenação que flerta com a dança-teatro, com Oládélè e Ramon Brant, e Um Preto, em processo de criação.

Quando a transmissão começa, não há luz. Antes dela, virá a palavra; e primeiro, o som. Fragmentos começa a instaurar sua atmosfera no estabelecimento de um ritmo por Oládélè, batendo a mão sobre o peito.

Este ritmo binário, que é o alicerce principal de quase todos os ritmos da canção popular do Brasil, veio importado de longe, das placas ardentes da África, onde o sol queimou a pele dos homens até carbonizá-la em negro. O compasso, tão simples que reproduz em tom grave as batidas do próprio coração, atravessou o Atlântico sob a bandeira dos navios negreiros, servindo para marcar o andamento de melopeias que vinham dos porões em vozes gemidas e magoadas.

A apresentação de Paulo Roberto ao disco Obaluayê! (1960), da Orquestra Afro-Brasileira, foi recentemente sampleada por Baco Exu do Blues na Intro de seu primeiro álbum, Esú (2017). O procedimento fragmentado do sample parece inspirar Oládélè na composição de sua live cênica.

Junto ao compasso que reproduz em tom grave as batidas do próprio coração, o artista insere a sua voz. No pedido de licença, traz um vissungo, músicas originalmente cantadas durante o trabalho de mineração nos rios de Minas Gerais no início do século XVIII. O antropólogo José Jorge de Carvalho os chama de cantos de força.

Os vissungos tinham também caráter ritual – além de estarem presentes em ações cotidianas das populações escravizadas. Quando Oládélè escolhe iniciar Fragmentos com um destes cantos, traz consigo uma sobreposição das tantas vozes que já os cantaram. Seu pedido de licença para Curiandamba e Curiacuca – ainda segundo Carvalho, equivalentes míticos de Exu, guardiões do caminho – já foi entoado e gravado por Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Firme no disco O Canto dos Escravos (1982).

Para além das entidades sobrenaturais, o vissungo também pede licença ao Sinhô Moço e ao Dono de Terra. A força mística envolve-se na trama social. Quando a luz acende, Oládélè canta de olhos fechados. Ao abri-los, sorri e convoca seu público a cantar junto. É um pedido de licença que traz a reverência necessária para que os caminhos estejam abertos; é também leve, com a certeza de que o caminho não será construído sozinho.

Apesar de criado como monólogo, Oládélè não está só. Para além da companhia de uma pessoa operando a câmera, o artista opera seu rito virtual por meio da convocação de muitas vozes e presenças. Do material de Um Preto, surge uma complexa receita que organiza – ou desorganiza – a ancestralidade nos tempos virtuais: ácido, Oládélè elenca ingredientes na velocidade dos likes de redes sociais.

Também é da obra mais recente da Companhia Negra de Teatro um texto que repete a multiplicidade inscrita no singular de seu nome. A premissa de Oládélè, que se ilumina apenas em fragmentos, parece ser precisamente a afirmação de que não apenas ele, mas toda e cada pessoa preta é um preto, muito além de um único marcador que estrutural e historicamente subalterniza uma população extremamente diversa.

As citações construídas, sempre iniciadas com este sujeito um preto, oscilam entre as mais e menos reconhecíveis. Desde seu início e durante toda a performance, Fragmentos evoca a pluralidade. Enquanto faz isso, compõe um manifesto uníssono e inequívoco em favor das vidas de populações marginalizadas.

Oládélè apresenta Fragmentos de sua cozinha; evidencia-se assim o caráter doméstico típico das produções da pandemia. Ao mesmo tempo, o artista conta com um amparo multimídia que redimensiona a estética proposta. Oládélè acompanha no saxofone a trilha sonora original de Felipe Storino e dança diante das projeções de Fabiano Lana. Com um teclado controlador, transforma um pedido – ouçam vozes negras – no beat que embala a cena.

Assim, Fragmentos constrói um preto mosaico na evocação, sampleada, remixada, reverberada, de vozes de muitos pretos, pretas e pretes. No uso interessante do material de Chão de Pequenos, o que emerge é o dado documental que embasou aquela pesquisa da Companhia Negra. Entre diálogos ficcionais de Brant e Oládélè e as gravações de entrevistas do processo de criação da peça, é a dificuldade de muitas crianças e adolescentes – especialmente pretas – de encontrarem seu lar.

Na sequência, as vozes evocam nomes de vítimas recentes da violência policial. Das crianças sem lares aos lares que tiveram executadas as suas crianças. O preto mosaico é tingido de revolta e morte. Mas há luta; há levante. A produção de Fragmentos convidou pessoas pretas, LGBTQIA+ e pertencentes a povos originários à enviar fotos para que se registre a resistência dessas existências. Diante destes rostos, o corpo pulsante de Oládélè, entre a esperança e a justa raiva, nos lembra que acima de tudo, há vida.